Mudança de costumes para falar da morte

 

Angélica Santa Cruz

 

A necessidade de perder o medo de falar da morte não está apenas dentro dos grandes hospitais. A julgar pelo que apontam os acadêmicos e médicos empenhados em recuperar as conversas de sala de visitas sobre “o supremo medo do coração dos homens” - como definiam os gregos - , reabilitar o tema tem implicações nos costumes e, sobretudo, no exercício da espiritualidade que acompanha os seres humanos. Cerca de 1 milhão de pessoas morrem no Brasil a cada ano, 32% delas de causas naturais. Ainda assim, a esperança de vida dos brasileiros ao nascer é de 71,9 anos - e só tende a aumentar. Projeções estatísticas feitas por técnicos do IBGE mostram que essa longevidade vai estreitar a convivência entre os mais idosos integrantes das famílias e os mais jovens.

 

Uma pessoa que em 2005 driblou os riscos de morrer até os 70 anos de idade pode, em média, chegar aos 85 anos - e terá proximidade com uma família com várias gerações marcadas por diferenças de 25 anos. Viverá perto de filhos, netos, bisnetos e em alguns casos, tataranetos. Será a volta do convívio intergeracional. Com uma diferença: deve ser uma gente que não sabe mais falar da morte, tende a vê-la de maneira clandestina e a continuar condenando seus idosos a uma despedida solitária. Ou ir para o pólo oposto, o de enxergar na banalização da morte pela violência um movimento natural.

 

“Nem todos tratam o assunto como tabu. Mas há uma falsa crença de que não falar sobre o assunto o elimina, e assim é como se não existisse. Acham que as crianças não percebem o que acontece. Mas elas têm visto na TV tantas mortes, que se não forem explicadas parecem algo natural, como as dos tiroteios”, diz Maria Júlia Kovács, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte da USP.

 

Salvação pela morte

 

Para a maioria acachapante dos seres humanos, o momento da morte é aquele em que suas crenças fazem sentido pleno. Para um ateu, é o fim da matéria. Para um católico, o momento de ajustar as contas com seus pecados. Para budistas ou espíritas, o começo de um novo ciclo. Por isso, os revisionistas da relação com o fim defendem que perder o medo de falar dele ajuda a tirá-lo da esfera estritamente biológica - e devolve o assunto à sua dimensão afetiva.

 

“Na proximidade da morte, pode-se resgatar a afetividade de uma vida inteira. E todo mundo tem o direito de ser confortado nessa hora da maneira como sua crença permite. A ciência se vingou dos séculos em que foi subjugada pela Teologia e hoje a morte é negada, escondida, vista como fracasso científico”, diz a pedagoga Dora Incontri, doutora em Educação pela USP, coordenadora do curso de pós-graduação de Pedagogia Espírita da Unisanta e uma das palestrantes do 1º Curso de Educação para a Morte - que terá seu primeiro dia dedicado às atitudes religiosas.

 

Conversas com alguns dos inscritos no curso mostram que, de fato o interesse pelo tema pode até passar por razões profissionais ou curiosidades históricas. Mas sempre tem um não-sei-quê de inexplicável.

 

Estudante de Psicologia, Iraci Ana Polizel, de 41 anos, fez sua inscrição, porque trabalhou em enfermarias, vai estagiar com cuidadores de pacientes terminais e acha que saber mais sobre o tema vai melhorar seu desempenho profissional. Mas também tem atração pelo desconhecido da coisa. “Ao meu ver, a morte é apenas uma passagem, outra etapa da vida”, diz. Historiador, interessado em numerologia, Marcio Mussek, de 50 anos, viu no curso uma “coragem da academia em discutir a morte com abordagem científica e religiosa”.

 

“Pensar na morte sempre levará o ser humano para questões da espiritualidade, porque implica questionar o sentido da vida”, diz o médico Franklin Santana Santos.

 

O assunto é uma pedreira, mas não deixa de lembrar a frase do escritor português José Saramago: “Sem a morte, seria muito violento viver”.

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Fonte: Jornal da Paraíba. Acesso em 21/03/2007.
Disponível em:
http://jornaldaparaiba.globo.com/gera-2-110307.html