Insubstituível prazer

Fernanda de Camargo-Moro

 

“A leitura é essencial em todos os aspectos, não só para cultivar o espírito e estruturar a personalidade, mas também para abrir caminhos, vias de comunicação e de embelezamento da vida”, define a historiadora e arqueóloga Fernanda de Camargo-Moro, que, durante quase 40 anos, se dedicou a um fascinante trabalho de campo em montanhas e desertos da Ásia e da Arábia. Envolvida em dois projetos – Himalaia e Rotas de Cultura, que vai de Veneza até a Índia –, ela analisava a relação dos achados arqueológicos de antigas civilizações com a cultura e o meio ambiente.

Com base em suas ricas experiências, Fernanda atualmente dirige teses e seminários, além de se dedicar à escrita. Fora as edições e os artigos de caráter técnico-científico, tem várias obras voltadas ao grande público: Arqueologias culinárias da Índia; Veneza: O encontro do Oriente com o Ocidente; A ponte das turquesas; Nos passos da Sagrada Família; Arqueologia de Madalena. São relatos de suas viagens, em que ela retrata amorosamente os aspectos culturais desses lugares distantes e das pessoas com as quais conviveu. Nas 500 páginas de A ponte das turquesas, por exemplo, percorre lendas, monumentos, história, arte e singularidades do império turco, como os mistérios do harém e as requintadas comidas palacianas. É um guia completo para quem vai a Istambul.

“Escrever, para mim, é uma forma de retornar a um tempo inesquecível e revivê-lo num novo espaço. Eu busco as memórias como um tecelão busca as cores para criar um tapete, ou como um aquarelista tange suas cores em busca de uma imagem”, diz a autora, que encontra, na literatura, o alimento para sua aguçada sensibilidade. “Quando não estou escrevendo, estou lendo – intensamente. Os livros são minha eterna paixão, o grande e insubstituível prazer.”

A arqueóloga ressalta que os livros foram imprescindíveis em sua trajetória profissional, mencionando alguns dos autores que mais a influenciaram, como Aristóteles, Hegel, Descartes, Voltaire, Fernand Braudel – “meu eterno guru e querido professor”. Suas indicações de leitura:

Ressurreição, de Machado de Assis. Esta primeira obra do autor, de 1870, me encantou quando eu ainda era criança. Como o próprio autor definiu, não é um “romance de costumes”, mas “o esboço de uma situação e o contraste de dois caracteres”. Na minha visão, ali se desenha, com firmeza, a luta entre a razão e a paixão.

Capitães da areia, de Jorge Amado. Escrita na primeira fase do autor, esta obra-prima denota sua intensa preocupação social. As autoridades e o clero, com exceção do Padre Pedro, são retratados como opressores, cruéis e responsáveis pelos males. Por outro lado, os problemas existenciais dos quase cem garotos que moram num trapiche abandonado os transformam em heróis únicos e corajosos, corajosos capitães das areias de Salvador.

O encontro marcado, de Fernando Sabino. Num estilo inovador, a história de Eduardo Marciano é contada por um narrador que parece conhecê-lo profundamente. O leitor é convidado a participar do relato e a se identificar com as angústias de Eduardo, que começam na infância, quando sua galinha de estimação vira o almoço de domingo.

A tragédia da Rua das Flores e os Os Maias, de Eça de Queiroz. A leitura destas duas obras geniais, que considero profundamente interligadas, transformou-se em uma nova experiência quando pude relê-las uma em seguida da outra – Os Maias, depois A tragédia –, observando com mais acuidade a metamorfose dos personagens e suas similitudes.

Justine, Balthazar, Mountolive e Cléa – os quatro volumes que compõem O Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell. Publicado no final dos anos 1950, é um conjunto literário que, a meu ver, permanecerá como Proust – exemplar e inesgotável. As novelas são passadas em Alexandria, uma cidade semi-oriental, com personagens europeus, orientais e mesclados das duas culturas. Seu estilo, que eu chamaria de metamórfico, pois os personagens vão se modificando dentro do ponto de vista de cada interpretação, me seduziu e enfeitiçou.

O vermelho e o negro, de Stendhal. Durante a ascensão social pretendida por Julien Sorel, figuram duas mulheres singulares, que representam as duas inclinações do seu caráter: a Senhora de Renal, o sonho e a aspiração a uma felicidade pura e simples; e Mathilde de la Mole, a energia, a ação brilhante e febril. Conseguindo conciliar realismo e romantismo, Stendhal faz um retrato social da época (1830) e o enriquece com uma inteligente e perspicaz análise psicológica.

Fora do lugar, de Edward W. Said. Nascido numa Jerusalém sob mandato britânico, de pais palestinos cristãos, que se viram obrigados a partir da terra natal logo após a criação do Estado de Israel, Edward W. Said viveu no Egito, no Líbano e nos Estados Unidos, sentindo-se sempre um ‘fora do lugar’. Neste livro, escrito durante sua luta contra um câncer que o levaria à morte em 2003, ele fala do processo de construção de sua identidade e, como pano de fundo, dos problemas que convulsionaram o Oriente Médio no século 20. Esta e outras obras do autor foram imprescindíveis para uma melhor compreensão das regiões ditas do Oriente.

Para onde você vai com tanta pressa, se o céu está em você?, de Christiane Singer. Esta obra, que mostra a parte mais sensível de uma mulher, confirma mais uma vez a sutileza e a profundidade dessa autora, cujos livros se tornam, para muitos, volumes de cabeceira.

Eu poderia recomendar ainda vários outros que, para mim, são inesquecíveis: Crime e castigo, de Dostoievski; A natureza das coisas, de Lucrécio; Cândido, de Voltaire; A balada do cárcere de Reading, de Oscar Wilde, Os ensaios, de Montaigne, Cartas persas, de Montesquieu, e muitos mais que este espaço não comportaria.
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Fonte: Livraria cultura, Biblioteca Ideal.
Disponível em:
http://www.livrariacultura.com.br
A
cesso no dia 28/03/2007.