Mais de cem anos de vida

Carmelina Augusta Delgado tem 106 anos. Viveu em diversas localidades do distrito de Bragança, cidade de onde é natural, mas foi em Vimioso que se fixou há cerca de setenta anos. Atravessou a história e adaptou-se à modernidade, com a simplicidade com que sempre viveu

 

A “Avó”, assim apelidada carinhosamente por todos os que a conhecem e visitam com regularidade, nasceu em Bragança, no dia 8 de Novembro de 1900. Hoje, com 106 anos, recorda a sua vida com a lucidez que sempre a acompanhou. Sentada no sofá, com as mãos marcadas pelo tempo, lembra as datas de criança em que, como diz, “eu e os outros raparigos andávamos a fugir descalços pelas ruas de Bragança”.


Carmelina Delgado conversa da história, de quando foi implantada a República e como reagiu a população. “Era eu pequena e com os outros íamos atrás da multidão até ao Principal ver quando começou a República. Estavam a discursar e nós íamos lá ouvir. E os monárquicos, lembro-me, escondiam-se nos poços que havia nos quintais para não serem presos”, conta.


Mas nem só de política se fez a história. Também as invenções marcaram a vida da “avó”. Na memória tem ainda a imagem do primeiro automóvel que percorreu as ruas da cidade e que foi perseguido pela criançada “a ver o que aquilo era”. E, com um sorriso, acrescenta que gosta muito de andar de carro e que nem enjoa. “A minha neta leva-me a passear. Ainda no outro dia, quando fomos à água, corremos tudo”, diz.


A vida de Carmelina não foi fácil. Aos dez anos saiu de Bragança, rumo a Vinhais para junto da madrinha, “a Dona Inacinha”, irmã de um antigo reitor do seminário, “Don Guilhermino”. Só saiu de casa da madrinha para casar, aos 23 anos. Apesar de na época ser uma idade tardia para contrair matrimónio, para Carmelina “fui bem a tempo. A mim chegava-me bem, porque eu não me queria casar tão cedo”. Casou e acompanhou sempre o marido, guarda de profissão, para onde este fosse destacado. “Percorri muito mundo adiante”, conta. Viveu em Mogadouro, Bragança, Guadramil, Varze e Vimioso, onde se fixou aos 40 anos, com alguma mágoa de não ter regressado definitivamente à sua cidade natal.


Com algumas pausas, porque o coração já não é o que era, Carmelina insiste, ao longo de toda a conversa, no trabalho, referindo que este foi muito. “Trabalhei muito, porque as pessoas dantes, qual viver! Se não fossem as hortas e matar os porcos, não dava para nada. O meu marido não tinha vagar de ir comigo. Por isso, ia eu sozinha e fazia tudo: cavava, punha as cebolas, os feijões, as batatas, ripava folha para os porcos, tudo. Ninguém sabe o que eu trabalhei desde que apertei a saia”. E trabalhou arduamente para criar as filhas que sempre afastou do campo. “As minhas filhas para o campo nunca as mandei, tudo em casa. Para
o campo nunca foram, que eu não queria. Elas faziam as coisas de casa. Então mandava as filhas ripar a folha e isso? Não, em casa tudo. Agora por fora não”, explicou. E insistente, contou que a filha mais velha foi aprender o ofício de costura com uma modista e a mais nova frequentava a escola.


A “Avó” desempenhava todas as tarefas. Agricultura, cozinha, lavava a roupa no rio e não “era como agora, que há máquinas para tudo. Agora é uma maravilha. Lavar a loiça, não se lava. Não fazem nada”. Mas resignada com o destino, sublinha que, se não trabalhasse assim, passaria fome, como as outras mulheres do seu tempo. O ordenado do marido não chegava para cobrir todas as despesas e, frisando, com orgulho, “nunca fiquei a dever nada a ninguém”. Contudo, para Carmelina, o trabalho árduo pode ter sido o sucesso para a sua longevidade. “Não sei qual é o segredo de durar tanto, que será? Talvez o trabalho, pois quanto mais se trabalha melhor a gente está. Por isso estou bem guicha e só peço a Nosso Senhor que me dê saúde”.


O seu dia-a-dia é preenchido com uma caminhada no terraço da casa, um olhar sobre quem passa, que já não conhece, “pois morreu-se tudo”, umas palavras com os passarinhos que a visitam em busca de alimento que, religiosamente, lhes prepara. Mas também a televisão entrou no mundo da “Avó”, substituta dos antigos serões preenchidos com a renda. “Gosto de ver televisão e muito de ver a bola, o Gordo, as notícias”, conta. Adepta do Futebol Clube do Porto, no desenrolar da conversa lá vai explicando, com sabedoria de verdadeira entendida, que no dia anterior o Porto empatou. “Ontem ficaram empatados. Primeiro marcaram os nossos (FCP) e segundo marcaram os outros (Chelsea). Foi uma pena. Eles bem andavam a ver se metiam outro, mas não conseguiram”, recordou.


Também é espectadora atenta das notícias, mas outros programas não segue, pois considera que são “chochos”. Agora, quando acaba o “Gordo” (Fernando Mendes), ouve o que se passa em Portugal e no mundo, afirmando peremptoriamente que “o país está muito mal, não há dinheiro nenhum e é uma miséria”. E, actualizada, exemplifica que “também fui saber se me davam o subsídio, mas disseram-me que não podia porque tinha a reforma do meu marido. Também não insisti, porque depois podiam tirar e tinha que o repor depois”. Informada, mas sem saber ler, apesar de conhecer as letras, explica: “conheço as letras todas, só não sou capaz de as juntar. Às vezes, na televisão, vejo as letras e três ou quatro ainda as junto, mas é rápido. Mas ainda ensinei às minhas duas filhas as letras”. Não junta letras, mas orgulha-se de atender o telefone como ninguém e conta: “quando telefonam e não está cá ninguém, vou eu e respondo, e bem! Toda a gente diz que com a idade que tenho atendo bem”.


Gosta muito de viver com a neta e nem se imagina num lar. Emocionada, com os olhos banhados em lágrimas, diz que não gostaria nada que a tirassem da casa onde vive e que se isso acontecesse, “gritaria. Eu muito por esta neta e tinham que me trazer de volta”. E, com um torcer de nariz, adianta “que será aquilo? (os lares), como viverão?”.


Carmelina Delgado quer continuar a sua vida tranquila, lamentando não poder trabalhar, porque o “corpo ainda lhe puxa”, mas já não consegue. O mais importante é que “Deus me dê a cabecinha até que me chame, pois de cabeça ainda estou muito boa”. Depois, em jeito final de conversa, remata com afinco que repara em tudo, que não vê bem, mas percebe as coisas todas: “a mim não me levam por lorpa”.
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Fonte:Mensageiro de Bragança, disponível em http://www.mdb.pt dia 01/03/2007.